A edição brasileira da Autobiografia do Poeta-Escravo, publicada pela Editora Hedra em 2015, conta com mais de 300 notas explicativas, escritas pelo organizador Alex Castro. O áudiolivro contém uma seleção das notas mais importantes. (Comprando ambos por aqui, você ajuda a manter esse site.)
Abaixo, uma pequena seleção.
(As fontes, referências e citações estão no livro impresso.)
Vida de Juan Francisco Manzano
Manzano escreveu a autobiografia em 1835, obteve sua liberdade em 1836, publicou sua peça de teatro Zafira em 1842 e continuou escrevendo poemas até, pelo menos, 1843, um ano antes de ser preso durante a repressão à Conspiração de Escalera.
Depois disso, passou seus últimos anos em silêncio: deixara de ser útil à açucarocracia e ela, a ele. A repressão não matou o homem mas calou o poeta: Manzano percebeu que a relevância literária era um perigo (o outro poeta afrocubano famoso, Plácido, foi fuzilado) e se cala.
Os açucarócratas do grupo delmontino talvez até desejassem a abolição do tráfico ou da escravatura, mas sua própria concepção de mundo e de si mesmos não concebia a possibilidade de um intelectual negro.
Com exceção da pequena janela histórica que se abriu para Manzano, uma união de abolicionismo militante britânico com capitalismo independentista açucarócrata (que logo desistiu de suas intenções autonomistas e escolheu permanecer colônia da Espanha até o último momento possível), nunca houve espaço para Manzano falar, escrever ou mesmo existir, seja como intelectual ou artista.
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Domingo del Monte, o homem que libertou Manzano
Domingo Miguel del Monte y Aponte (1804-1853), o “mais verdadeiro e mais útil dos cubanos de sua época”, nas palavras do herói nacional José Martí, pouco escreveu, mas em suas tertúlias literárias (no Brasil, chamaríamos de saraus), realizadas regularmente entre 1834 e 1843, foi gestada, discutida, lida, comentada, editada e corrigida a incipiente literatura nacional cubana.
Apesar de membro de um dos mais poderosos grupos escravistas do mundo, com mais de quarenta engenhos de açúcar e quinze mil pessoas escravizadas somente em Cuba, del Monte empreendeu a delicada tarefa de contestar a escravidão sem demandar sua abolição, uma espécie de delicado e instável “antiescravismo escravista”.
Do grupo delmontino, saíram diversas narrativas cubanas sobre a escravidão, inclusive a autobiografia de Manzano, escrita a pedido de del Monte e enviada, junto com outros textos abolicionistas, para ser publicada em Londres.
Parte da açucarocracia cubana, ou seja, da elite produtora de açúcar, reformista e não abolicionista, percebendo que o sistema de trabalho escravo era incompatível com a escala industrial-capitalista de produção dos engenhos de açúcar, queria libertar-se da escravidão e do tráfico negreiro, mas não libertar as pessoas escravizadas.
Em 1844, a repressão à pretensa Conspiração de Escalera — uma mescla de Plano Cohen com Revolta dos Malês, que pode ter sido real ou não — deu ao governo metropolitano espanhol a perfeita justificativa para enquadrar com violência esse protonacionalismo cubano.
Cauteloso, del Monte se auto-exilou na Europa, onde escreveu uma carta aberta ao jornal francês Le Globe garantindo não ter nenhum envolvimento com a tal Conspiração, pretensamente liderada por pessoas negras livres e escravizadas, e despindo várias máscaras: entre outras coisas, admitiu desejar não só o fim do tráfico mas também limpar Cuba da infeliz e atrasada raça africana, que ameaçava a existência social e política da Colônia, pois só assim Cuba se tornaria o mais brilhante “bastião de civilização” da raça caucasiana no mundo hispânico. E acrescenta que precisaria ser “louco delirante” para apoiar “uma amálgama social” das raças somente para conseguir a independência, essa monstruosidade.
Palavras do “mais verdadeiro e mais útil cubano de sua época”.
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Cartas de Manzano para del Monte
25 de junho de 1835:
“Desde que me pediu a história, faz três ou quatro meses, me pus a percorrer o espaço que preenche a carreira de minha vida e, quando tive oportunidade, me pus a escrever, acreditando que bastaria um real de papel, mas depois de escrever um pouco, saltando às vezes quatro ou cinco anos, ainda nem cheguei em 1820. Espero terminar em breve, restingindo-me somente aos fatos mais interessantes. … Me envergonha contar essa história, e não sei como apresentar os fatos deixando a parte mais terrível no tinteiro. Oxalá eu tivesse outro fatos com que preencher a história da minha vida. … Lembre-se que sou escravo e que o escravo é um morto perante seu senhor. Considere-me um mártir e descobrirá que os infinitos açoites que mutilaram minhas carnes desde criança jamais envileceram este seu servo.”
29 de setembro de 1835:
“Me preparei para lhe fazer uma parte da história da minha vida, mas deixando de fora os acontecimentos mais interessantes, para, se algum dia me encontre sentado em algum canto de minha pátria, tranquilo e com minha sorte e meu sustento assegurados, escrever um romance propriamente cubano: convém, por ora, não dar a esse assunto toda a extensão maravilhosa dos diversos lances e cenas, porque daria um tomo, mas, apesar disso, não faltará material para vossa mercê. Amanhã, começarei a roubar da noite algumas horas para fazer isso.”
O anseio literário de Manzano é mais radical do que parece: nesse momento histórico, ainda não se havia escrito nenhum romance em Cuba. Ele jamais escreveu seu “romance propriamente cubano” mas sua autobiografia certamente é um dos textos fundacionais da literatura do país.
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Os sapatos das pessoas escravizadas
Tanto em Cuba quanto no Brasil, as pessoas escravizadas geralmente não usavam sapatos. Nas propriedades rurais cubanas, sapatos não faziam parte da roupa dada às pessoas escravizadas embora elas algumas vezes produzissem os seus.
No Brasil, mesmo as chamadas “escravas de ganho”, que às vezes possuíam os meios para comprar e vestir roupas elegantes, tinham que andar descalças, para deixar bem exposto o “estigma indisfarçável” da escravidão. Ao fugir do cativeiro, muitas imediatamente calçavam sapatos, misturando-se assim na multidão de pessoas negras livres, e os anúncios de fuga advertiam: “anda calçado para fingir que é forro”.
Em Cuba, as regras era mais relaxadas: escravas domésticas e pajens, como Manzano, usavam sapatos mas eram frequentemente punidas com a perda desse privilégio.
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Richard Madden, o homem que publicou Manzano
O médico irlandês Richard Madden (1798-1886) passou quatro anos em Cuba, de 1836 a 1840, como Superintendente dos Emancipados e Árbitro Interino da Comissão Mista Britânico-Espanhola. (Ou seja, era um dos responsáveis por vigiar se a Espanha estava de fato cumprindo os tratados antitráfico impostos pela Inglaterra.)
Abolicionista convicto, Madden provavelmente foi um dos catalisadores do boom de literatura antiescravista produzida pelos membros do círculo delmontino. Em 1840, ele publicou em Londres um volume chamado Poemas de um Escravo na Ilha de Cuba, Recém Libertado, que incluía, além da autobiografia de Manzano, traduzida por ele e intitulada “Vida do Poeta Negro”, diversos outros textos e poemas.
Em um deles, “Condição dos Escravos em Cuba”, Madden conta que, durante seu primeiro ano, não viu nem ouviu falar de nenhuma atrocidade contra pessoas escravizadas. Pelo contrário, facilmente se pegou enxergando pelos olhos da classe proprietária, pensando como pensavam, acreditando naquelas histórias idílicas sobre a felicidade dos escravos, contadas nas casas-grandes, depois do jantar, entre digestivos e charutos (“customary after-dinner doze of the felicity of slaves”).
Foi apenas quando visitou os engenhos por conta própria, de surpresa, sem ser esperado, recebido ou guiado, que pôde finalmente testemunhar as terríveis atrocidades e maldades transcendentes de um sistema escravista tão assassino.
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O fracasso da literatura antiescravista cubana
Os literatos cubanos do grupo delmontino acreditavam que a escravidão corrompia a sociedade e impedia o progresso de Cuba mas, mesmo assim, não podiam apoiar uma abolição (ou pior, uma rebelião) que ferisse os interesses econômicos de suas famílias e de sua classe social, que transformasse as pessoas escravizadas em pessoas cidadãs.
Desejavam encher a literatura com os sofrimentos da escravaria, gostariam que o tráfico cessasse, preferiam que o chicote do capataz parasse de flagelar as carnes negras… mas nunca consideraram abdicar das riquezas produzidas pelas pessoas escravizadas, nunca propuseram fazer delas cidadãs em pé de igualdade, nunca foram capazes de vê-las como pessoas humanas.
Como dizia Del Monte, “a escravidão é o câncer que nos corroi” (grifo meu): o problema não eram as pessoas negras exploradas e escravizadas, mas sim o efeito negativo que isso tinha… em nós!
O paradoxo do antiescravismo literário cubano foi desejar um sujeito branco, mas ter que contar com a linguagem do negro para a articulação do discurso literário nacional.
No fim, seus esforços fracassaram pois sua motivação não era o amor e a alteridade, o bem-estar das pessoas escravizadas e sua incorporação à sociedade, mas somente o medo de um novo Haiti.
Quem ama, se aproxima, respeita, escuta; quem teme se afasta.
Esses literatos produziram inúmeras narrativas sobre a escravidão (quase todas modeladas na autobiografia de Manzano) mas nunca se aproximaram o suficiente de suas personagens escravas para ouvir o que tinham a dizer: suas pessoas escravizadas fictícias não tinham voz e precisavam da elite branca para defender seus interesses.
Os intelectuais da açucarocracia eram, ao mesmo tempo, os donos dos meios de produção da colônia e também os colonos sem direito a voz própria: oprimem e são oprimidos.
Ao escrever sobre a opressão às pessoas escravizadas (aliás, quase sempre perpetrada por eles mesmos), estavam na verdade falando da opressão que sofriam nas mãos da metrópole.
Pagavam pelo delito de ter escravos com a pena de ser escravos da Espanha, dizia Del Monte.
Sua literatura antiescravista não se aproximou das pessoas escravizadas porque não precisava delas: não eram gente, eram metáfora.
E, por fim, quando chegou a hora da verdade, quando o Abolicionismo inglês estava agitando a massa escrava e parecia cada vez mais próximo e mais possível o estalo de uma nova sublevação, os compradores de liberdades literárias se assustaram e preferiram o jugo da metrópole espanhola aos riscos da liberdade.
Nas palavras de um deputado liberal-progressista:
“toda novidade política que se faça em Cuba é um passo em direção à independência, e todo passo em direção à independência é um passo em direção ao extermínio e à ruína dos capitais e das pessoas. … Se Cuba não for espanhola, será negra, necessariamente negra.”
Ou, como disse um açucarócrata:
“A pátria é a propriedade. Que não se espere revolução em Cuba enquanto se possa fazer açúcar.”
O povo de Cuba pagou caro por essa decisão: a maioria das colônias espanholas conseguiu sua independência na década de 1810 e nenhuma derramou tanto sangue quanto Cuba.
A partir de 1868, quando a elite cubana finalmente se decidiu pela independência, precisou enfrentar os recursos concentrados de uma Espanha desesperada para não perder praticamente sua última colônia.
Incapaz de vencer até mesmo essa potência decadente, Cuba foi tomada sem esforço algum pelos Estados Unidos, em 1898, e transformada na primeira neocolônia do novo imperialismo norte-americano do século XX.
Para entender o entusiasmo popular pela Revolução Cubana de 1959 é preciso antes entender os duzentos anos de História que ela se propõe a corrigir.
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O paradoxo da elite negra livre cubana
Os exercícios, ou treinos militares, dos batalhões de Pardos e Morenos Leais eram realizados semanalmente, em geral aos domingos de manhã, em locais públicos, e atraíam pequenas multidões de observadores.
Esses batalhões formavam o cerne de uma pequena “aristocracia” de homens negros livres e prósperos, que adquiriam assim enorme prestígio e poder. Entretanto, eram também constantemente empregados para escoltar desembarques de pessoas escravizadas, caçar fugitivas ou atacar quilombos.
Para merecer e manter seu status privilegiado dentro da sociedade colonial branca, os morenos e pardos leais precisavam reprimir e suprimir os desejos e os anseios, as ações e as liberdades, de outras pessoas afrocubanas que não tinham os mesmos direitos que eles.
Até mesmo esse pequeno enclave de privilégio negro, porém, acabou tornando-se insuportável. Em 1844, a repressão à dita Conspiração de Escalera simplesmente destruiu essa nova classe social: além de matar e exilar muitos de seus principais líderes, uma de suas primeiras medidas burocráticas foi proibir os batalhões.
Independentemente da luta entre escravistas e abolicionistas, a açucarocracia branca cubana e peninsular simplesmente não concebia conviver com uma classe de pessoas mulatas e negras livres em ascensão.
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A verdadeira causa das rebeliões escravas
Depois da Revolução do Haiti, um dos maiores intelectuais da açucarocracia cubana ainda caçoou dos franceses:
“tinham ensinado a seus escravos sobre a Revolução Francesa e, assim, construído sua própria ruina. Criadores de anarquia não podem reclamar.”
Na verdade, como diz um dos personagens do romance O Século das Luzes, de Alejo Carpentier, a Revolução Francesa não causou as rebeliões escravas, mas apenas deu sentido político e “legalizou” a Grande Fuga que já estava em andamento desde o século XVI.
A verdadeira causa das rebeliões escravas era uma só: a própria escravidão.
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O espelho não é passivo
Para os literatos do círculo delmontino, a capacidade mimética de Manzano era, ao mesmo tempo, lisonjeira e assustadora. Por um lado, serem imitados por alguém tão talentoso era a comprovação de seu poder. Por outro, o furor antropofágico de Manzano, que tudo repete, tudo recria, tudo recita, produz nos amos uma ansiedade insuportável, uma terrível suspeita de que o espelho, afinal, não seja tão passivo assim.
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A poesia de Manzano
Ao longo da vida, e mesmo quando ainda escravizado, Manzano publicou diversas coleções de poesia, assim como também poesias avulsas nos principais jornais e revistas literárias de sua época.
Hoje, entretanto, sua produção poética nos chama atenção menos por sua qualidade e mais por seu estilo neoclássico calculadamente correto e desesperadoramente convencional.
Não que isso seja um problema: suas poesias são originais precisamente por serem tão imitativas, produtos de seu gênio para imitação, de seu extraordinário e transgressor talento mimético para deliberamente se apropriar dos códigos das pessoas brancas, tornar-se fluente neles e vencê-las em seu próprio jogo: dominou tão bem o idioma do neoclassicismo poético que suas poesias se tornaram praticamente paródias desse estilo.
Mas, se Manzano encaixa-se sem esforços no eu-lírico da poesia neoclássica, manejando em sua cabeça diversos mestres-poetas para usar de exemplo, a escritura da autobiografia não possui modelo, nenhuma persona autobiográfica para imitar, nenhum outro homem negro escravo para emular.
Ele está sozinho.
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Corpo versus palavra
Manzano evitava até mesmo se “roçar” com outras pessoas negras, tanto insistia em se banhar que foi até castigado e se tornou muito fluente nos códigos de vestuário de sua época. Desde cedo, ele parecia intuir a função individualizadora da roupa para cobrir e controlar seu corpo, corpo esse que era o objeto do poder das pessoas proprietárias.
Mais tarde, ao reconhecer que a escrita dava ao sujeito a capacidade de transcender seu próprio corpo dolorido, escravizado e explorado, Manzano obteve por fim sua liberdade.
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A sorte de Manzano
A menção ao avô (e, mais ainda, à pequena herança deixada pelo avô, gerenciada pelo pai e distribuída aos netos) pode parecer natural, e até passar desapercebida, à pessoa leitora do século XXI.
Mas crescer próximo à família, ou mesmo saber quem é sua família, era um dos principais privilégios das pessoas livres sobre as escravizadas. Poucas eram as pessoas escravizadas criadas por pai e por mãe, e raras as que conheciam as avós.
Dentro do sistema escravista industrial açucareiro, um jovem escravizado, pajem da sinhá, morando em ambiente doméstico e urbano, com acesso a padrinhos e à proteção do Estado, fazendo aulas com os sinhôzinhos e sinházinhas, e indo ao teatro e a saraus, etc, era a mais privilegiada de todas as pessoas escravizadas. O fato de estarmos hoje lendo a autobiografia é um testemunho de seus enormes privilégios.
Qualquer outra pessoa escravizada cubana teria histórias que fariam a vida de Manzano parecer um paraíso de mil delícias.
Talvez seja esse o aspecto mais aterrorizante do texto: ele é a história de uma pessoa escravizada de sorte.
Se a vida das pessoas escravizadas privilegiadas era assim, como seria a vida das outras cuja voz nunca chegou até nossos ouvidos?
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As enfermarias de engenhos
As enfermarias de engenho pareciam verdadeiros “sepulcros visíveis de múmias”. Era normal estarem internadas cerca de um quarto das pessoas escravizadas, chegando às vezes até quase metade — de uma população jovem e apta, só retiradas do serviço em último caso, quando visivelmente incapaz de trabalhar, e sempre pelo tempo mínimo possível.
Em diários de enfermaria de engenhos cubanos, aparecem itens como
“Teresa, vômitos e diarréia; Cristina, evacuando sangue; Germán, dores de barriga” e até mesmo um singelo, mas assustador, “cansado”.
(O quão cansado uma pessoa escravizada teria que estar para sua proprietária aceitar perder sua força de trabalho por um dia?)
Por suspeita de fingimento, muitos eram recusados: um dos diários de enfermaria afirmava, em 30 de janeiro de 1842, “Nicolás, nada”. Poucos dias depois, no mesmo diário, outra anotação, agora na coluna das baixas:
“Nicolás, morreu”.
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A mortalidade nos engenhos
Entre 1835 e 1841, época em que Manzano escreve a autobiografia, a taxa bruta de mortalidade dos engenhos açucareiros cubanos era de cerca de 63 por mil.
Em uma população jovem e bem-alimentada, pré-selecionada por seus atributos físicos e livre de doenças congênitas, morriam anualmente 5% de trabalhadores em plena atividade.
(Para fins de comparação, no Brasil de 2005, a taxa de mortalidade era de 6 por mil, dez vezes menor, e incluindo aí pessoas idosas e doentes.)
Uma frase popular da época já dizia:
“açúcar se faz com sangue”.
Outra frase, popular entre pessoas escravizadas no Brasil e em Cuba, evidenciava bem qual era prioridade diária dessas pessoas:
“o problema aqui é não morrer.”
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Soltar os cachorros
Soltar os cachorros em uma pessoa escravizada fugida era uma prática relativamente comum. Algumas vezes, resultava em morte.
Em 1855, em Matanzas, um homem escravizado deu queixa contra um capataz de engenho. A acusação: durante a captura de um colega escravizado fugido, o capataz teria lhe ferido com o machete e soltado os cachorros em cima, causando assim sua morte. Várias testemunhas, todas escravizadas, confirmaram as acusações.
Resultado: o acusador foi açoitado, preso por quatro meses e depois vendido. O capataz nada sofreu.
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O cabelo das pessoas escravizadas
A cabeça raspada era associada à morte e à escravidão em todo o mundo.
Assim, raspar o cabelo de uma pessoa escravizada simbolizaria sua “morte social” e “condição permanente de liminaridade”.
A escravidão negra nas Américas, entretanto, foi a exceção a essa regra e revela o poder simbólico do cabelo. Afinal, em um continente onde os tons de pele eram tão variados e misturados, as pessoas escravizadas já traziam bem visível nos cabelos a marca da sua negritude. Raspá-los só ofuscaria a distinção.
Ainda assim, como no caso de Manzano, raspar a cabeça era usado como castigo especialmente humilhante.
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Um testimonio sobre a dor e a tortura
A tortura é a grande silenciadora: ela apaga nossa capacidade de expressão, nosso conceito de eu e o próprio mundo que nos rodeia. Nossa consciência se dissolve e se desarticula na intensidade da dor.
Por isso, toda forma de poder se baseia na distância do corpo: o corpo é justamente o lugar da dor e da fragilidade, o calcanhar-de-aquiles que permite que sejamos torturados. (O poder, por seu lado, não tem corpo, só discurso.)
O gênero literário do testimonio é o contra-ataque: ele permite inundar os regimes torturadores em um dilúvio de vozes, vozes que falam em nome da pessoa silenciada. Se o grito de dor reduz a vítima ao estado pré-linguístico, o testimonio é o espaço onde a vítima reconstrói o seu mundo, rearticula sua voz.
A legitimidade do testimonio está em levar a palavra de volta ao corpo da vítima, em devolver a voz à pessoa silenciada pelo terror.
Nesse aspecto, a autobiografia de Manzano é um testimonio sobre a dor e sobre a tortura.
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Testimonio versus autobiografia
O texto de Manzano existe em um instável equilíbrio entre a autobiografia, gênero que destaca a singularidade da experiência individual, e o testimonio, onde a experiência individual serve como reflexo da condição coletiva.
O abolicionista Richard Madden, que traduziu e publicou o texto na Inglaterra, praticamente reescreveu a narrativa, eliminando detalhes individuais e transformando Manzano naquilo que era, em sua opinião, o “mais perfeito retrato da escravidão cubana”.
Manzano, por outro lado, parece conscientemente fugir disso: ele nunca se coloca como “um dos negros”, ou “um dos escravos”, e, pelo contrário, faz de tudo para se distanciar deles.
Mais ainda, ao enfatizar o poder da poesia, Manzano continuamente singulariza sua própria experiência. Para si mesmo, ele é poeta e não escravo.
Não deixa de ser uma cruel ironia, portanto, que a maioria de suas pessoas leitoras ao longo dos séculos (talvez você?) estivesse primeiro buscando o escravo e não o indivíduo.
Na falta de um Norte abolicionista para promover os testemunhos das pessoas escravizadas fugidas do Sul escravista, como nos Estados Unidos no século XIX, a autobiografia de Manzano não tinha uma tradição literária latino-americana onde se inserir, e só começou a ser revista, relida, republicada e reestudada a partir da década de 1970, quando o testimonio se tornou um gênero literário viável.
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Pedir papel
“Pedir papel” era um dos principais direitos adquiridos das pessoas escravizadas cubanas: ir até o síndico (funcionário municipal encarregado de defender os interesses das pessoas escravizadas, geralmente um fazendeiro escravista) e forçar sua venda, quase sempre pelo preço previamente coartado.
Mesmo que a pessoa escravizada não alegasse maus-tratos, havia sempre uma crítica implícita às suas atuais pessoas proprietárias, que experimentavam a tripla humilhação de ser criticadas em público pela sua pessoa escravizada, perdê-la à força e ainda sofrer interferência estatal em seus assuntos privados.
A lei reservava à pessoa escravizada somente quatro direitos, nem sempre respeitados: casar livremente; buscar novas proprietárias; juntar economias e formar pecúlio; comprar sua própria liberdade.
Naturalmente, as pessoas escravizadas em ambientes domésticos e urbanos, como Manzano, possuíam mais informações e mais acesso ao Estado do que as que trabalhavam no campo.
Em sua edição inglesa dos textos de Manzano, o abolicionista Richard Madden incluiu um apêndice sobre a condição das pessoas escravizadas em Cuba, onde falou sobre “pedir papel” e coartação, e terminou citando George Canning, estadista inglês que lutou incansavelmente pela abolição do tráfico negreiro:
“qualquer lei para a melhora parcial da condição dos escravos será sempre defeituosa, pois as pessoas encarregadas de sua implementação têm interesse em derrotá-las.”
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Censura sobre a escravidão
Escrita por volta de 1836, a autobiografia de Manzano apenas seria publicada em Cuba um século depois, em 1937.
Diversos outros textos antiescravistas produzidos pelos delmontinos tiveram o mesmo destino. Como disse um dos membros do grupo, “estamos condenados a calar ou, quando muito, fazer versinhos de amor”.
As leis coloniais espanholas dispunham com detalhes sobre o tipo de artigo que poderia ser publicado na imprensa e proibiam especificamente que se escrevesse sobre escravidão. E não apenas escrever.
Em Matanzas, em 1868, já na véspera da Guerra de Independência, uma ordem do governador proibiu expressamente que uma pessoa negra cantasse pelas ruas uma canção chamada “O escravo”, por “semear o descontentamento e germinar propósitos desesperados e funestos” na escravatura do país.
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Os direitos das pessoas escravizadas
A lei assegurava à pessoa escravizada o direito de dar queixa contra suas proprietárias por maus-tratos.
Entretanto, a lei também dizia que as pessoas escravizadas não podiam sair de casa sem permissão por escrito das proprietárias; que pessoas de cor (mesmo livres) não podiam sair às ruas depois de determinada hora da noite, e nem se reunir com outras em público; que as proprietárias tinham que avisar às autoridades sempre que uma pessoa escravizada fugisse; e que era não só proibido abrigar essas pessoas fugidas como obrigatório apreendê-las ou dar parte delas.
Então, pensando de forma prática e concreta, como poderiam as pessoas escravizadas dar queixa dos excessos cometidos por suas proprietárias?
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Manzano, símbolo das contradições da subalternidade
Em A Tempestade de Shakespeare, o branco europeu Prospero rouba as terras e a liberdade do nativo Caliban, ao mesmo tempo em que lhe concede um dom problemático e complexo: a fala.
“Você me ensinou sua língua, e o que ganhei com isso foi que aprendi a praguejar”, diz Caliban, “que a peste vermelha acabe com vocês, por me terem ensinado sua linguagem.”
Manzano também recebeu um idioma que não era seu, para que pudesse melhor servir suas pessoas proprietárias. E, como a pessoa em posição subalterna não necessariamente é passiva, Caliban e Manzano contra-atacam, cada um de seu jeito.
Caliban reafirma sua natureza animal e seus baixos instintos (um outro nome para “instintos não-europeus”) e tenta violar a filha de Prospero.
Manzano, mantendo-se sempre cuidadosamente dentro da esfera cultural branca, conseguiu perpetrar uma violação talvez maior: com sua memória e seu talento e sua fala, ele roubou a escrita para si, correndo grande risco pessoal, e a utilizou para obter sua liberdade.
O ato de Manzano foi ainda mais revolucionário que o de Caliban: em vez de agir como uma fera e confirmar os preconceitos das pessoas brancas, Manzano as derrotou em seu próprio jogo, seguindo suas próprias regras.
O grande dilema é que a façanha de Manzano é realizada dentro dos limites da prisão que lhe ofereceu seu Prospero, del Monte: a cultura branca. Para vencer na sociedade branca, Manzano precisou tornar-se parcialmente branco e afastar-se de sua própria condição negra e subalterna.
Não mais Caliban mas também nunca Prospero, autor consagrado mas ainda negro em uma sociedade escravista, Manzano ao mesmo tempo é e não é: símbolo vivo das contradições da subalternidade.
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A ambição das pessoas escravizadas
Manzano sublinha sempre sua familiaridade passada e presente com algumas das grandes figuras locais (aquele ele viu bebê, essa hoje é freira, etc), só para mais tarde afirmar, quase pateticamente, que hoje já não sabem quem ele é.
Esse era talvez o grande paradoxo de Manzano: não havia espaço naquela sociedade para um intelectual afrocubano.
Em 1841, a Condessa de Merlin, cubana da alta elite que morava na Europa e fazia apologia da escravidão à distância, escreveu:
“Suponhamos que os ingleses consigam obter, sem transtornos e sem desordens, a emancipação dos escravos de nossas colônias. Seu primeiro sentimento, sua primeira necessidade, qual será?
Não fazer nada. O trabalho lhes é insuportável e só se consegue obrigá-los a trabalhar a força. Um negro indolente e selvagem, desprovido de todo desejo de progresso, de ambição, de dever, preferirá substituir sua vida vagabunda e sensual pelos rigores de um trabalho voluntário e de um sustento adquirido com o suor de sua testa?
Mas suponhamos que, por um milagre, a educação moral dos escravos libertados se desenvolvesse de repente e os estimulasse a amar o trabalho.
Caso se convertessem em trabalhadores, os negros não demorariam em se ver atormentados pelo desejo de ser proprietários; pela rivalidade, pela ambição, pela inveja contra os brancos e suas prorrogativas.
Sob um regime político constitucional, em um país governado por leis equitativas, não exigiriam participar dessas mesmas instituições?
E vós lhes concederiam vossos direitos e vossos privilégios? Fariam deles vossos juizes, vossos generais, vossos ministros? Dariam-lhes vossas filhas em matrimônio?
Não é isso que queremos, exclamarão os amigos dos negros: que sejam livres, mas que se limitem a trabalhar a terra e a conduzir a cana como bestas de carga.
Não consentirão: se hoje ocupam-se dessas atividades e consideram-se felizes em seu estado imperfeito de homens selvagens, no dia em que se acenda para eles a luz da inteligência perceberão que são homens como vós, e o campo de batalha ficará com o mais forte.
Refleti: quando estalar o primeiro sinal de combate, não haverá piedade possível entre duas raças incompatíveis.”
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Manzano e a Revolução Cubana
Um dos livros cubanos mais traduzidos em todo o mundo se chama Memórias de um Cimarrón e é o testimonio de Esteban Montejo, que fugiu do cativeiro e viveu isolado nas matas até a abolição da escravatura.
Os relatos de Montejo e de Manzano são os únicos de pessoas escravizadas da América Latina que chegaram até nós — no Brasil, não existiu ou não sobreviveu nenhum.
A diferença é que Manzano escreveu seu relato de próprio punho, em 1835, enquanto ainda estava escravizado. Já Montejo deu seu testemunho ao antropólogo Miguel Barnet em 1963, aos 103 anos de idade.
Apesar de seu ato radical de rebeldia e fuga, a Revolução Cubana nunca se apropriou de Manzano.
O esforço revisionista oficial de encontrar (ou criar) uma tradição revolucionária que funcionasse como fio condutor da história e da literatura nacionais, desde o século XIX até o triunfo revolucionário, não incluiu Manzano.
O escravo selecionado para encarnar as virtudes revolucionárias foi Esteban Montejo.
A tensão mais importante em Memórias de um Cimarrón é justamente entre a personalidade misantropa e individualista de Montejo, sua vontade de se isolar e de não ajudar aqueles que não conseguem lutar por si mesmos, e as tentativas desastradas e transparentes de Barnet de apresentá-lo como um protorevolucionário defensor do povo.
Mas funcionou: hoje, nas livrarias cubanas, se vêem muitos exemplares das Memórias de um Cimarrón, mas nunca vi nenhuma cópia da autobiografia de Manzano — editada em Cuba pela primeira vez em 1937 e, pela última, há mais de quarenta anos, em 1972. Nas histórias literárias, ele mal é citado.
Manzano, apesar de manso na medida certa para os delmontinos de 1830, era manso demais para os revolucionários de 1959 — apesar de ter sido tão cimarrón quanto Montejo.
Com uma importantíssima diferença: Montejo renegou a sociedade branca colonial como um todo, se isolou completamente nas matas e só voltou ao convívio humano durante a Guerra de Independência.
Manzano, por sua vez, nem sabia selar um cavalo e dedicou todos seus esforços para vencer na sociedade branca urbana.
Não surpreenda que parecesse conservador demais para os fins políticos e ideológicos da Revolução Cubana.
Apesar de nunca ter sido proibida em Cuba, a autobiografia de Manzano é muito mais lida fora da ilha do que dentro.
Em 2015, será publicada pela Ediciones Matanzas a primeira edição cubana da autobiografia de Manzano em mais dez anos, com posfácio do historiador matancero Urbano Martinez Carmenate e com as notas e introdução de Alex Castro.
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A correção da autobiografia de Manzano
Anselmo Suárez y Romero, membro das tertúlias de Domingo del Monte, encarnava os paradoxos insolúveis do antiescravismo escravista: ao mesmo tempo em que era dono empobrecido de um engenho medíocre e, portanto, ganhava a vida explorando o trabalho das pessoas escravizadas, também escrevia narrativas comoventes, de ampla empatia e observações detalhadas, sobre a vida dessas pessoas. (Sua crônica “O Cemitério do Engenho” é uma joia.)
Foi o primeiro entre tantos homens brancos a editar a autobiografia.
Em 20 de agosto de 1839, ele enviou a del Monte a autobiografia copiada e corrigida (provavelmente o manuscrito não-autógrafo que hoje se encontra na Biblioteca Nacional José Martí), com os seguintes comentários:
“A ortografia e a prosódia foi onde mais tive que emendar. … Do estilo, modifiquei muito pouco em relação ao original, a fim de deixar-lhe a melancolia com que foi escrito, e a simplicidade, naturalidade e até um certo desalinho que lhe dão muito mérito, removendo toda suspeita de que os acontecimentos referidos sejam mentira, mentira que um pobre mulato nos conta para nos envergonhar. …
O senhor encontrará frases muito castiças, mas não tenho culpa, o original já as possui: outras inarticuladas e, em muitos trechos, uma soltura, uma fluidez que encanta. …
Meu coração, que se irmana com as desgraças de essa classe de criaturas que, por terem nascido escravas, se levantam chorando, comem chorando e dormem e até talvez sonham chorando, pode imaginar o quanto ficou dolorido ao copiar a história de Manzano. E a outros muitos que por aqui leram lhes sucedeu o mesmo.
Isso é um triunfo, senhor! Isso merece uma festa maior que a coroação de um rei! Já se vê que essa história foi escrita sem pretensões, sem acusações para ferir o amor-próprio dos brancos, e que em toda ela não se vê mais que a pura e limpa verdade.
Que cenas tão domésticas, tão próprias de nossa vida privada! Como Manzano corrige a tirania dos amos apenas com a força dos fatos! Uma lástima, senhor Del Monte, que essa autobiografia não será publicada. Mas… onde? Como?
A primeira parte vai copiada: a segunda, o senhor disse que Palma a jogou fora [Ramon de Palma, também membro da tertúlia delmontina, encarregado de copiar e corrigir a segunda parte], a quem, de minha parte, pode dar meus maiores agradecimentos “por um serviço tão eminente à causa mais nobre do mundo e à nossa escassa literatura.”
Para corrigir o belo cuidado de Palma, não poderia pedir a Manzano que escrevesse de novo a segunda parte de sua história? Eu me comprometo a copiá-la.
O caso é completar os diamantes de tão rica joia.”
Toda a história do texto de Manzano — sua encomenda, escritura, correção, edição, reorganização, tradução, publicação estrangeira, esquecimento, omissão das histórias literárias, e celebração posterior como um testimonio da condição afrocubana — constituem uma verdadeira taxidermia do corpo escravo.
* * *
O silêncio de Manzano
Uma teoria mais sinistra especula que a segunda parte era tão forte que foi censurada, seja pelos literatos de del Monte ou por alguma das antigas pessoas proprietárias de Manzano.
No prefácio à edição inglesa, Madden alimentou essa hipótese:
“A segunda parte caiu nas mãos de pessoas ligadas a seu antigo senhor, e receio não ser provável que sejam devolvidas à pessoa a quem sou grato por [ter me fornecido] a primeira parte do manuscrito.”
A nota inicial afirma que Manzano “perdeu seus dotes de poeta”, mas não faz sentido rotular seu silêncio de forma tão depreciativa.
Pelo contrário, foi um silêncio digno, adulto, estratégico.
Um silêncio ainda mais pavoroso do que qualquer novo horror que ele poderia ter nos contado na segunda parte — que teria sido, afinal, apenas mais um horror em uma já extensa lista de horrores.
Na verdade, o seu silêncio, intencional e construído, É a segunda parte da autobiografia.
* * *
Manzano depois da autobiografia
Nos anos seguintes, Manzano trabalhou de doceiro, cozinheiro e alfaiate.
Em 1840, irresistível mencionar, no mesmo ano em que se tornou um autor publicado na Inglaterra, ganhou 250 pesos na loteria e parou de trabalhar por algum tempo.
Casou, enviuvou, casou de novo, teve diversos filhos. Seu último casamento, aos trinta e oito e ainda escravizado, com uma parda livre de apenas dezenove, causou oposição da família da noiva, mas durou quase vinte anos, até sua morte, e foi aparentemente feliz.
Enfim, em 1844, durante a repressão à (verdadeira ou imaginada) Conspiração de Escalera, passou mais de um ano preso e teve sorte de escapar com vida.
Depois de libertado, não publicou mais.
Morreu em 1853, aos cinquenta e seis anos de idade, mesmo ano em que também morreram talvez as duas figuras-chave de sua vida: a Marquesa do Prado Ameno, que tanto o amou e tanto o torturou, e Domingo del Monte, que o libertou e lhe encomendou a autobiografia que se encerra agora.
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